O Cobertor Colorido


       PRÓLOGO

 

     Este conto nasceu de um olhar sobre nossos dias. E da lembrança de uma linda história que conheci.

     Há algumas décadas, um jovem pastor narrou uma experiência, de sua infância, para ilustrar sua ministração: Quando menino, acordou numa madrugada fria, ouvindo uma suave conversa. A porta do quarto ao lado estava entreaberta, e sua avó ajoelhada no chão, sob um cobertor colorido, orava.

       Não guardei mais detalhes, mas a mensagem que ficou em minha memória: Sua avó, nas madrugadas frias, orava por sua família sob um cobertor colorido.

        Recentemente passei por um jovem casal como tantos outros, exceto por um detalhe: A moça em seu agir, seu andar, seu falar parecia uma princesa. Logo lembrei: esta moça é uma das bisnetas da mulher que orava por sua descendência, sob um cobertor colorido.

A vovó do cobertor colorido, já a muito não está aqui. Mas quem a conheceu ou ouviu falar, pode ver o fruto de seu andar ainda hoje, em ramos mais distantes de sua árvore genealógica, onde ela era a raiz. Onde seu “andar” era de joelhos sob um cobertor colorido.

                                                &

Certa vez perguntei a Deus: Como orar por minha descendência, e a resposta veio rápido, embora eu tenha levado muito tempo para entender:

Anda na minha presença e sê perfeito.” Gn 7: 1. Estava certo! 

 


O Cobertor Colorido


          Houve um dia mais frio na aldeia, em que foi anunciada uma catástrofe na terra. Comentários no mercado. Na igreja. Na fruteira. Na esquina. As famílias se abasteceram como puderam, reforçaram suas portas e esperaram, a cada dia, que os sinos anunciassem a hora do recolher.

           Cecília, ainda nas ruas, aconchegou a manta ao pescoço, voltando de seu trabalho. Entrou em seu humilde chalé, e fechou a tranca da porta. Ali era seu mundo, ali cuidou de seus pais até o fim. Peluda veio recebê-la como sempre. Porém, agora, com o olhar preocupado, aninhou-se a seus pés.

Cecília colocou uns gravetos no fogão preparando um alimento para ambas.

Sua casa e sua despensa não pareciam reforçadas, o bastante, para o tempo anunciado.

          Na madrugada acordou com estrondos e muita chuva. Peluda a olhava, ela colocou a cachorrinha sob suas cobertas. Lá fora durante uma trovoada, uma claridade iluminou o aposento, mostrando uma ponta colorida saindo de um velho baú. Tateando conseguiu pegar a peça, era um antigo cobertor feito de retalhos coloridos. Lembrou-se de sua mãe e das historias que contara sobre um certo cobertor.

          Cecília embrulhou-se na peça macia. Certamente alguém de sua família conheceu a historia e pacientemente o teceu com retalhos. Fosse como fosse, segundo a história, era o lugar onde se falava com Deus: pensou ela. Seria o seu abrigo então.

 Junto, na mesma gaveta o Livro Antigo, amarelado pelo tempo, quase podia vê-lo nas mãos de seu pai, a cada manhã.

E durante os difíceis dias a provar, Cecília andou sob seu abrigo colorido durante tempos escuros. E sob ele passou suas madrugadas, ouvindo do Livro Antigo quando a luz permitia e, nas horas mais escuras, declarando-o.

Embora sentindo que seu falar com Deus era um monólogo de quem nada mais tem a fazer.

Até que certa manhã sentiu a estrutura de seu casebre ceder. Foi então que um sentimento claro e doce a instruiu: Sobe para o Forte! O Forte? O velho mosteiro lá encima da montanha? Mas como? Pensou ela.

Até que um vento mais forte arrancou uma janela e ela enxergou a montanha sobre o vale onde vivia sua Aldeia.

    Certamente lá em cima havia uma construção forte, desabitada. Diziam tratar-se de um antigo Mosteiro. Mas um lugar difícil, longe de campinas verdejantes. Pouco se sabia de alguém que lá ainda vivesse. Neste momento, no entanto, quem se atinou mais cedo e com alguma força para escalar, deve ter corrido para lá.

     O baque de uma estrutura despencar ao lado de sua casa tirou-a do estado de torpor e dúvida. Como vou fazer, não sou mais tão jovem. Instintivamente colocou no ombro um alforje com suas coisas. Enrolou-se no cobertor colorido com Peluda, agarrada as suas costas, e sem esforço já estava na rua. Tomou um sarrafo de madeira caído de sua casa, e apoiando-se sobre ele chegou ao sopé da montanha.

     Pessoas tentavam subir. O chão ruía, a água do rio subia. Sua atenção foi chamada para uma singela escadinha de madeira. Ia correr, mas virou-se, e quase sem fôlego anunciou: Eia; há uma escadinha aqui! E seguiu sentindo que não ia conseguir quando uma mão forte a puxou.

                                                            &

       Acordou na manhã seguinte sobre um catre de lona. Mas apesar do corpo dolorido, se sentia muito confortável. O conforto de um lugar amplo e seguro. Aquecido por um grande e velho fogão num canto do forte. Peluda a seu lado passava a língua em sua face, feliz por vê-la acordada. Ah! Graças a Deus, pensou. Está aqui comigo, minha companheira.

       Mais pessoas pareciam estar chegando, tremendo e exaustas. Uma senhora distribuía uma chávena de chá e pão quentinho.

Os rapazes salvaram dois cãezinhos que estavam sobre um galho à deriva. Colocaram os animais em frente ao fogão. Peluda correu até eles, procurando confortá-los.

Com o passar dos dias Cecília, ao se sentir fortalecida, começou a ajudar. Enquanto se ocupava dos vários afazeres, ao receber pessoas resgatadas da catástrofe, foi-se inteirando do lugar: Um velho forte. Um antigo mosteiro. Um lugar rústico e, agora, acolhedor.

Mesmo com tudo o que estava acontecendo, havia tanta vida ali. Mulheres trabalhavam bravamente. Grandes panelas de sopa cheirosa, feijões. Pães no borralho a assar. De algum modo a ajuda chegava.

Mesmo os que chegavam feridos, se sentiam inundados de paz.  

Enquanto trabalhava, Cecília organizava em sua mente os sentimentos que lhe subiam a alma naquele momento: Pois quando o Dia chegou, eu estava em meu refugio, um cobertor colorido. E meu forte estava seguro.

Meu forte sobre o vale, não será destruído por armas humanas.

Um forte sobre o vale onde nada faltava: pois aqui o paladar se aprimora e o verdadeiro sabor se revela. E nada falta: nem abrigo, nem pão, nem azeite, nem vinho, nem uvas, nem figos. Nem calor, nem luz, nem frescor.

Pois tudo, tudo é armazenado sob o manto da oração, onde nada, nada é perecível, mas a cada dia brotam frescos do solo fertilmente regado pelas canções da alva.  E amadurecem em odres excelentes.

O pão sai do forno, dourado como o trigo no dia da colheita. Assados em fornos construídos com o esmero da boa vontade, e ainda quentes repartidos pelas mãos do próprio amor.

       Os cantores cedo enviam suas notas. Notas de enlevo chegam de longe, outros descem com asas a bicar o grão que cai da tosca e perfeita mesa. Eles chegam perto dos pés de sandálias, mas não os bicam, antes os acariciam com a penugem molhada pelo orvalho ainda.

Pois Ele está à cabeceira da mesa, e Sua presença inebria a montanha.

 E se derrama sobre o vale...

 

Um jovem se aproximou de Cecilia, tirando-a de seu enlevo: A senhora parece bem melhor. perguntou ele.

Sim, obrigada. Respondeu Cecília: Foi você que me puxou da escada?

Na verdade, a senhora ficou presa a ponta de um galho na encosta, por uma manta ou rede colorida, como num milagre. Então conseguimos resgatá-la. Explicou o moço.

Cecília o olhou com gratidão e entendeu: certamente quem me susteve não foi o frágil cobertor, foi o Deus com quem conversei durante estes últimos dias.

Mesmo me sentindo abandonada eu aprendi intimidade. Eu aprendi adoração. Eu aprendi o amor. Ele estava tão perto, o tempo todo. E eu não o sabia.

...Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia.” Gn 28:16

Fim


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