Os átrios  

 

       Quando criança, vovó contava histórias maravilhosas sobre um jardim que Deus construiu para seus filhos. Mas aconteceram coisas que O entristeceram tanto que toda a humanidade foi banida do paraíso. Até que um dia Seu Filho, veio ao mundo propor aos homens um Caminho para voltar ao Reino. Mas as pessoas haviam mudado tanto, que não conseguiram acreditar.

      Um dia, ao subirmos uma colina, vovó apontou para o norte. E eu assentei em meu coração: quando crescer, vou conhecer essa cidade ao norte onde está o Jardim. Para uma criança não há impossíveis, um coração juvenil não entende muito bem as limitações de um adulto.

        Hoje penso que minha avó queria nos dar esperança e adoçar o próprio coração diante das vicissitudes da vida. Mas agora, depois de decepções e desencantos, há momentos que gostaria de voltar a acreditar.  

       Por uma destas coincidências difíceis de explicar, a empresa que comprou a Taberna onde eu trabalhava desde a adolescência, planejava grandes mudanças. E um boato, entre freqüentadores da Taberna, falava de uma pousada contratando funcionários, numa cidade ao norte, que parecia esconder antiguidades de interesse de estudiosos. Por se tratar de um lugar tão distante e muita incerteza houve pouco interesse.

Poucas semanas depois a taberna, como fora previsto, fechava suas portas.

Após pensar alguns dias, abracei a fotografia amarelada de minha avó e disse a mim mesma: Verônica você está só e sem emprego. Coloquei umas peças de roupa e objetos pessoais dentro de uma velha bolsa de sarja. E comprei uma passagem de trem para uma cidade desconhecida.

   A POUSADA:

         Quase dois dias de viagem. Quando o trem finalmente chegou ao destino, O funcionário da ferrovia me informou como chegar a pousada.

Uma construção antiga num lugar que um dia deve ter sido rodeado por árvores. Eram, na maioria, galhos secos agora.

     Ninguém na recepção. Desde que desci na estação, minha vontade era pegar o primeiro trem de volta, mas estava cansada. Sentei em uma cadeira e pude observar o refeitório, já devia ser hora do jantar. Um grupo de pessoas enchia as mesas.

       Quando o refeitório começou a esvaziar, uma menina me avisou que não havia mais acomodação disponível. Só uma mansarda acima dos alojamentos. Aceitei logo, estava exausta e pelo jeito não tinha escolha.

Enquanto subia, me chamavam atenção detalhes antigos e sombrios do lugar.

Deitei numa cama que havia no canto, sob o teto baixo, para experimentar e só acordei na manha seguinte quando já ia alto o sol.

     Soube que o grupo de pessoas que se instalou na pousada, eram arqueólogos, escavando em busca de coisas antigas. Então havia alguma verdade, no falatório da Taberna.

Enquanto fazia uma refeição, observava a menina da noite anterior que se esforçava para limpar o refeitório. Sem dizer nada passei a ajudá-la. Logo percebi que uma mulher, segurando uma colher de madeira, me olhava atentamente:

_ Estamos desfalcados, disse ela, meu marido foi buscar mantimentos. Eu estou só na cozinha. A cozinheira foi embora, justo quando chegou tanta gente.

Estamos começando a reestruturar o negócio aos poucos. Estava tudo ao abandono há décadas. Não podemos pagar muito por enquanto, mas se estiver interessada. É bem-vinda.

Embora me sentindo diante de um desafio, resolvi ficar. Pois é: Às vezes é preciso enfrentar o deserto antes de encontrar sua terra prometida.

Á tarde fui organizar o que seria meu aposento. Lavei colchas empoeiradas. Depois de tudo mais limpo pareceu mais aconchegante. Uma gatinha tigrada, agilmente subiu e entrou pelo alçapão entreaberto. Soube então que teria companhia: ___ Num lugar onde tudo parece cinza, você é um colírio. E comecei a chamá-la assim.

Percebi que era uma casa que vivera ao abandono. Quartos fechados guardando pertences de gerações passadas. O casal que veio reabilitar a pousada era um dos herdeiros. Mas toda a cidade, embora povoada, parecia abandonada. Uma Cidade Perdida.

Quando andava pela casa sentia o ímpeto de pedir licença por estar invadindo o espaço que pertencera a gerações passadas.

 Dona Jandira me contou um pouco da história da família. Com o passar do tempo foi transformada em pousada, e depois o abandono. Fiquei pensando nas famílias que viveram ali, que construíram a propriedade: certamente houve um tempo de risos, de crianças brincando, de amores. Havia marcas de corações desenhados sob cascas secas de algumas árvores. Inscrições, já ilegíveis, em velhos bancos de madeira.

Parece que tudo na cidade perdeu o valor. Poucas famílias tiveram seus motivos para ficar. E os herdeiros da última geração, não conseguiram vender a propriedade.

 

          Os átrios

Com as tardes livres, comecei minhas incursões pela estrada arenosa. Às vezes o vento não permitia ir muito longe. Mas em dias amenos podia me aventurar: Onde está o rio azul que vovó falava? Ironizava.

Numa tarde mais agradável, comecei a andar a ponto de achar que estava perdida. Sentei em um banco de pedra sob o que teria sido, um dia, um caramanchão. Um raio de sol acariciou-me o rosto, penso que cochilei. Então percebi a pouca distancia um conjunto de árvores milenares, olhando mais de perto, troncos muito grossos e retorcidos. Parecendo uma floresta fechada. Copas muito unidas. Quase nenhuma luz. Somente ao esgueirar-me um pouco entre as arvores mais próximas, havia como que um caminho. Alguém certamente já tentou espiar o que guardava tão densa e antiga floresta. Havia marcas de machado e desistência.

Quando resolvi voltar, caiu uma chuva repentina. Ao buscar abrigo sob o arvoredo, vislumbrei uma muralha. Sua altura acima das copas das árvores, e um portal coberto de musgo parecia trancafiado através de séculos.

Finalmente a muralha, será a Muralha do Jardim? Sobre toda a sua estrutura, densa camada de plantas e musgo como se há muito tempo se tivesse formado. Empurrada pela curiosidade fui observar mais de perto, e então vi o alto e austero portão, cheio de ferrolhos invencíveis, lacrados pelo tempo. Me senti atraída pela madeira esverdeada e milenar:

    _ Ah! Seria ali o meu jardim? Então é verdade? Não pode estar fechado para sempre! Lentamente e com as mãos espalmadas cai de joelhos aos pés do imenso portal.

Reuni coragem para bater. Bati por um espaço de tempo, com as mãos em punho.

 Aos poucos consegui levantar apoiada no imenso bloco de madeira. Então notei uma inscrição muito bem escondida, três palavras: “Pedi. Buscai. Batei.”

De volta a pousada, fui em busca do Livro Antigo que havia encontrado na noite anterior. Estava no fundo da gaveta de um criado mudo ao lado de minha cama. E lá encontrei a mesma inscrição.

 “Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á.
Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á.”
Mateus 7:7,8

Como pedir? Como buscar? Como bater? No dia que descobri a muralha devo ter ficado mais de uma hora batendo naquele portão e nada aconteceu.

Fui para a cama enquanto uma palavra ressoava dentro de mim: ‘’Perseverança.’’

Assim que adormeci, ouvi um barulho no alçapão. Vesti um abrigo e fui verificar. Estava tudo devidamente fechado, mas ouvi passos. Quando abri a portinhola, percebi que alguém descia a escada e olhava para cima, como se esperasse ser seguido: _ Quem está ai? Perguntei.

Sem hesitar ele respondeu: _ Sou o porteiro. Venha.

_ O quê? Perguntei mais curiosa do que assustada.

Ele me olhou e falou: _ Você bateu.

  “Para este o porteiro abre, as ovelhas ouvem a sua voz...” João 10:3

 

             O olhar, não saberia decifrar. Um misto de humildade, profundidade e beleza. Quando me dei conta estava na rua e o segui até a muralha. Mas agora tudo estava diferente. Não eram somente as portas abertas, havia degraus imensos de pouca altura, como um anfiteatro, feitos de um mármore rosado. E muitas, muitas pessoas espalhadas por todo aquele átrio em atitude de oração. Algumas clamavam. Outras buscavam. Outras adoravam.

 _ Quem são estas pessoas? Perguntei ao porteiro.

_ Irmãos do mundo inteiro, respondeu: Veja ali são grupos adorando no templo de suas cidades. Mais aqui pessoas solitárias clamando em suas câmaras de dormir.

 _Mas, como pode ser?

_Aqui nos átrios estão todos unidos. Muitos têm consciência disto e oram uns pelos outros. Como está escrito:

“ ... certos de que sofrimentos iguais aos vossos estão-se cumprindo na vossa irmandade espalhada pelo mundo.1 Pedro 5:9

 

“Em nossos momentos de angústia, somos levados naturalmente à oração, como os destroços são levados pelas ondas até a praia. A raposa corre para sua toca para se proteger; o pássaro voa para a floresta em busca de abrigo; e da mesma forma, o cristão em provação corre para o altar em busca de segurança. O grande porto de refugio do Céu é Todo-oração; milhares de embarcações castigadas pelo tempo encontram abrigo lá e, quando a tempestade chega, é sábio que façamos isso com todas as velas.” Charles H. Spurgeon, 2018.

 

  De dentro das portas abertas emanava luz abundante. E tanta vida que nem todos conseguíamos enxergar. Perguntei “ao porteiro” que me acompanhava: _ porque as portas agora estão abertas, e não há vestígios de abandono?

_ “,..porque a todo aquele que bate se abre “ mas é necessário perseverança. O caminho é longo. Há muito a conhecer. Seus olhos apenas começam a se abrir.

Toda aquela luz e vida que emanavam de dentro daquelas portas derretiam meu interior. Ajoelhei-me também. E molhei com lágrimas aquele piso celestial. Muitos derramavam lágrimas: alguns com cânticos, outros com arrependimento. Outros com extrema dor. Todos aceitos sob o mesmo manto de luz e compaixão. 

Coloquei o rosto no chão e pedi perdão: _ eu sou apenas uma pecadora.. _ Mas você bateu: Ouvi em resposta.

 

Acordei em minha cama, sentindo uma onda de amor me abraçando, me aceitando. E ela vinha de dentro, de algum lugar no fundo da alma. Algum lugar que começava a renascer.

Colírio, a gatinha amarela, encolhida a meus pés. Já amanhecia.

Mais tarde quando preparava o café para os poucos hospedes, dona Jandira entrou na cozinha bocejando.

 

Mas passou o inverno, outra vez a pensão estava cheia de hospedes. E com o trabalho dobrado, o carroceiro entregava produtos da granja direto na pousada. Minhas andanças até a muralha se tornaram mais difíceis.

Como eram pesados os dias. Uma terra arenosa. A pousada, prédio de construção antiga, paredes largas e pesadas, quebradiças e secas. Porões com quartos inabitados. Gerações que passaram por ali deixando histórias que talvez nunca tenham sido contadas.

 

Na cozinha, eram horas mexendo caldeirões de frutas para fazer geléia. Assando pães. Limpando aves ou peixes.

 

          Numa tarde em passamos areando panelas e alumínios com areia, minhas mãos doíam tanto. Conforme me aconselhou dona Jandira, passei um pouco de gordura nas mãos calejadas. À noite enchi com água morna uma banheira e tentava relaxar enquanto pensava: O que estou fazendo aqui?... Mas voltar para onde? Para quem?

       Como numa fila os pensamentos se acotovelaram: Lúcio. Enquanto esperava por ele tive três noivos, mas nenhum tenho agora. Como a mulher de Samaria no poço. Um judeu lhe pediu água, sendo que era Ele quem tinha água para lhe dar.

Quase sem animo exclamei: _ Pai, preciso que me dês da água viva! Enquanto lágrimas começaram a teimar em meu rosto marcado.

“... Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva.” João 4:10

        Sacudi o estado de alma, como uma incomoda toalha e subi para meu singelo refúgio. Antes de deitar, me ajoelhei e debrucei sobre a cama, vencida pelo cansaço. Só consegui dizer uma palavra:_Pai. Um fio de calor começou a derreter a dureza que me feria alma. Apoiada sobre a cama adormeci.

Adormeci, desejando estar nos átrios do Senhor com meus irmãos do mundo inteiro. Nesta noite aprendi que para isso, só precisava de silêncio e solitude. Só precisava bater, só precisava buscar...

Quando percebi corria pelas ruas com pés descalços em busca do meu amado.

“Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade, pelas ruas e pelas praças; buscarei o amado da minha alma.” Cantares 3:2

 

Então cheguei aos magníficos degraus e, sobre pétalas perfumadas, comecei a subir, quase sem tocar o piso, em vestidos de puríssima seda. Meu cabelo esvoaçante. Uma transformação, que naquele momento se fazia. Assim me via andando sobre os átrios do meu Deus.

 Ao chegar à sala onde se erguia o trono, Ele estava lá! Sentado. Lindo, mais do que nunca.

Fiz uma reverência. Ele estendeu os braços. Deslizei para seus pés. E depois de muitas lágrimas eu vi. Vi as profundas cicatrizes em Seus pés. Muitas lágrimas os lavaram. Cabelos os secaram!

E eis que uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento; e, estando por detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e os enxugava com os próprios cabelos; e beijava-lhe os pés e os ungia com o unguento.” Lucas 7:37,38

 

 Acordei em minha cama, devidamente coberta, já de manhã. Será que foi real? Com certeza, não foi apenas um sonho. Agora sei que há muito a buscar. Agora sei que há um Caminho a seguir.

 No livro antigo, a Bíblia Sagrada, vim a descobrir muitas histórias. A história da humanidade. A história da criação. A salvação por Jesus Cristo, o Filho de Deus. A origem da vida e o Mapa para voltar pra casa.

 

Epílogo:

Este conto foi extraído de um capitulo de meu livro: Cidade Perdida.

Referencias:

Bíblia Sagrada

Charles H. Spurgeon, Dia a dia com Spurgeon, pg: 39. 2° Impressão. 2018.


Comentários

  1. Lindo. Uma parte específica me emocionou, pq foi o q aconteceu comigo está madrugada. A parte dos átrios, do local de oração onde todos se encontram.

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    1. Amém! Realmente emocionante, tanto o comentário como a experiência !

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