Sobre Fundamentos, um conto

 

SOBRE FUNDAMENTOS,    
             


                                        

Um Conto: 

           O Jeep deixou o cavalheiro à entrada do mosteiro. Ernest agradeceu, e desceu, taciturno, a estradinha de pedras.

            Apesar de cansado da viagem observou a paisagem, uma antiga construção quase à margem do precipício.

        Nos primeiros dias de sua estada, foi apresentado a seu colega de quarto. Informado dos horários da capela. E horários das refeições. Horários rigorosos, para um lugar frio e silencioso. Quase uma semana se passou quando foi chamado a conversar com Silas, o Monsenhor.

       Cedo, após as orações da manhã, durante o desjejum, Silas homem simples e despojado, segundo Ernest, convocou-o para sua mesa: Lá fora, embaixo do arvoredo.

      Meu nome é Silas, apresentou-se o monge, convidei-o para conversarmos aqui porque já é primavera, já não faz tanto frio. Embora sejam bastante simples nossas acomodações, continuou, espero que esteja tendo uma boa estada, e principalmente que encontre o que precisa.

            Ernest cumprimentou-o constrangido. Foi sua primeira lição naquela manhã. O homem a sua frente, extremamente humilde em sua aparência, demonstrava em seu falar e olhar mais do que o mero titulo. Aos poucos, no entanto, sentiu-se mais a vontade. E quando se deu conta, ambos caminhavam sobre as falésias.

        E então, perguntou Silas: O que o trouxe a este lugar? Considerando, continuou, que para mim hoje, este é um dos melhores lugares que conheço. Mas quando cheguei aqui, minha história era bem diferente.

                                                                  &

         Com o passar dos dias, Ernest inicia seu compartilhar com Silas. Com outros monges em reuniões. E com outras pessoas em grupos; que, como ele, ali estavam em busca de alento e direção. Juntando às suas narrações o aprendizado e compreensão, de si mesmo, acrescentados naqueles últimos dias.

 

TEMPO DE COLHER:

        Foi em um anoitecer de dezembro, começou ele, que me permiti enxergar: estava sob depressão e tristeza, facilmente encobertas sob muito trabalho.

      Ao sair do hospital onde trabalhava, devido a uma emergência, meu carro ficou preso entre duas ambulâncias. Decidi caminhar até o prédio onde morava, cinco quadras abaixo. Seria bom respirar um pouco, esticar as pernas.

             As lojas apinhadas, com muito brilho. Crianças e pais felizes e atarantados. Não lembrava de ter vivido tais momentos com meus filhos. Através de uma vitrine, meu olhar foi direcionado ao setor de brinquedos de uma loja: O jovem Donald, meu assistente, com o olhar cansado, mas feliz, com uma garotinha agarrada a seu pescoço. Junto a ele uma jovem mulher decidida, tomando conta de mais dois pequenos. Observei quando passaram pelo caixa com um carrinho cheio de caixas coloridas. E vi quando o colega acariciava os cabelos cacheados da mulher sorridente. Não lembrava que era casado. Não sabia quantos filhos tinha. Não sabia que era feliz.

      Enquanto andava pela avenida, alheio as luzes e aos sons, percebi um chamamento que parecia se dirigir a mim vindo de um outro tempo: Papai! Papai! A meu lado um homem abria os braços para uma criança que vinha em sua direção. Tive a sensação de ter perdido coisas importantes.

        Catherine, minha mulher, sempre se ocupara de compras e preparativos em todas as ocasiões. Eu era ocupado demais. Importante demais. Rico demais para ocupar-me com coisas básicas. Todavia lembrava do quanto fora cobrado. Quantas promessas fiz com boas intenções, e não consegui cumprir. As coisas se acomodaram durante o percurso, mas de um modo que agora pareceu injusto.

            Enquanto girava a chave na porta, lembrei que não vi minha mulher se afastar de mim. Não vi meus filhos crescerem. Eles pareciam ter tudo o que precisavam. Formávamos uma bela família, que produzia fotos lindas. Agora era um homem que andava só, numa rua cheia de sorrisos. E que morava só, num apartamento confortável e aquecido, mas frio.

           Naquela noite, quando fui olhar a correspondência que se acumulara. Encontrei o, sempre gentil e anual, Cartão de Natal de Laura, minha irmã mais velha, como sempre, convidando para visitá-la. O passar do tempo e as circunstancias nos afastaram, mas gradualmente Laura buscou de algum modo nos contatar. A maturidade e a vida, transformaram minha meiga e sofisticada irmã, em uma mulher simples e forte. Através do singelo Cartão de Natal, quase pude sentir sua mão estendida e seu olhar penetrante, e generoso. Poucas vezes a vi depois de seu casamento. A última vez foi no funeral de papai. Ela estava triste como todos nós, mas transmitia uma paz em seu olhar, que eu não conhecia até então.

              O casamento de Laura causou, na época, um escândalo a toda a família. Seu escolhido não foi bem aceito. Laura, uma menina obediente e esmeradamente educada, desmanchou o noivado com um homem bem sucedido, segundo nossos pais, para casar com um jovem seminarista. Ela o conheceu numa escola da periferia, onde foi trabalhar como professora voluntária. Pietro era o gestor da escola primaria, enquanto cursava o seminário. E minha irmã ficou fascinada com a autenticidade e caráter de Pietro.  

          O ilustre James visitava nossa casa, com a autorização de papai e apreço de mamãe para cortejar sua filha. Até Laura contar a ele e a nossos pais, que gostava de outro homem.

          Meu pai considerava Pietro um jovem pobre e sem futuro. Quando Pietro foi falar com papai, este o aconselhou a buscar outra carreira. Prometeu oferecer-lhe uma oportunidade em sua empresa. E quem sabe, lhe daria a mão de sua filha. Mas Pietro foi taxativo em sua resposta: Senhor, eu amo sua filha, e gostaria de fazer dela uma mulher muito feliz, mas para isto, não posso abdicar da mim. Despediu-se e foi embora, abatido e triste.

         Meu pai tentou argumentar com Laura: você abriria mão de tudo por ele, mas ele não faria isso por você. Ela, encostada ao batente da porta, olhando o teto, sem esconder um suspiro, respondeu: Meu pai, eu estou sofrendo muito, mas já sabia que Pietro não agiria diferente. Ele cursa o seminário para aprender a ajudar as pessoas. E deseja casar comigo com o seu consentimento. Ah, entendi, seu eleito quer um dote certamente; Sorriu papai com ironia: Não papai, redargüiu Laura: ele só quer a mim com a sua benção. Nas semanas seguintes, papai conversou muito com Laura. E finalmente consentiu em seu casamento com Pietro. Eles se casaram numa cerimônia simples na Capela da Escola onde trabalhavam. Só mamãe e eu fomos ao casamento. E Laura levou de nossa casa, apenas uma mala de roupas. Ambos tinham vinte e dois anos.

          Durante muitos anos tudo o que soube de minha irmã, é que foi viver numa cidade interiorana, onde seu marido foi enviado como Pastor. Mas  durante esses anos todos mandava-nos um cartão no Natal e convite para que fossemos visitá-los. Nos últimos eventos, em minha vida, pensei muito em Laura.

UM PASSADO MAIS REMOTO:

          Crescemos em uma família tradicional que, como tal, priorizava a boa educação. A boa escola. A boa religião que consistia em não faltar à igreja aos domingos e o almoço em casa de nossos avós. Um mundo perfeito.

          Fui educado para vencer. Após a formatura em medicina, durante a residência, procurei o que havia de mais desafiador na área. O pai de minha noiva era um respeitado oncologista. Então decidi que iria superá-lo. Meu casamento foi uma bela festa. E depois, lindos filhos para tirar fotos de família.                           

      O traço mais forte em quase todas as áreas de minha vida era o orgulho. Que só agora consigo enxergar.

        Meu sogro deixou sua clínica em minhas mãos ao se aposentar. Mas não senti alegria em suas palavras quando disse: Sei que tem tido algumas vitórias Ernest, mas não esqueça daquilo que é mais importante. Ele saiu pela porta apoiando-se na bengala. E eu, tão “inteligente”, levei décadas para entender suas palavras. Mas essas palavras começaram a se revelar, numa tarde na cantina.  Donald, meu assistente, sentou a minha frente com sua bandeja: Professor, o Sr. Negri, foi levado para casa hoje cedo conforme o senhor recomendou para se despedir da família. Mas ele tem confiança de que Deus ainda vai curá-lo. Isso é bom. O jovem falava enquanto comia apertando os olhos, revelando cansaço.

         Não pude deixar de rir diante de sua ingênua declaração, enquanto fechava a revista que tinha em mãos. Donald me olhou como se nunca me tivesse visto. Levantou lentamente, pegou sua bandeja e disse: Doutor, sei que é um caso muito grave. Mas tenho mais fé em Deus, seja para viver ou morrer, do que na ciência. O senhor não?

          Não! Ele, meu aluno e seguidor, admirador do meu trabalho não sabia quem eu era. E eu também não sabia que tinha como auxiliar, um aluno brilhante que confiava verdadeiramente em Deus. Não, eu não conhecia Deus, nem mesmo de ouvir falar. Pouco guardara dos cultos dominicais. Para mim, tudo não passava de rotina, exposição de valores. Uma escola a mais, menos rígida, que só exigia algumas horas de silêncio aos domingos. E ensaiar músicas com o coral juvenil, no Natal. O duramente exigido sempre foram as notas escolares. Pois disso dependeria um futuro de vitória.

 

UM POUCO DE PRESENTE:

         Agora, poderia me vangloriar de minhas vitórias. Mas não tinha com quem fazê-lo. Minha mulher me deixou, e eu não conhecia meus filhos. Parece que houve uma tempestade e levou tudo o que construí.

        Comecei a observar Donald, ele era um cientista. Mas não demonstrava pretensões. Conseguia olhar o sofrimento humano, e crer em um Deus Todo Poderoso. Agora percebo, a marca forte no seu caráter não era ingenuidade, mas humildade e fé.

          Em minha solitária véspera de Natal, dirigi a uma cidade do interior aceitando o convite de minha irmã mais velha, a quem há anos não via. Quando cheguei à sua cidade estavam todos na igreja, celebrando a data: O Nascimento de Jesus! No final da reunião, uma mulher tão simples quanto alegre veio me abraçar. Minha irmã. Ela e o marido me convidaram a ficar com eles. Uma casa modesta e acolhedora. Jovens casais e crianças, filhos e netos de minha irmã mais velha. Uma comprida mesa com assados e doces, feitos em casa, me fez lembrar a domingueira em casa de meus avôs. 

        Pela manhã, quando desci, encontrei Laura e Pietro na cozinha. Ele preparava o café. Enquanto conversava-mos lembrei uma antiga dúvida de mamãe: “Porque Pietro não se despediu de Laura ao sair, tão triste, com as palavras de seu pai?” Os dois sorriram enquanto colocavam a mesa, ele respondeu com outra pergunta: Porque Abraão não se despediu de seu filho amado no monte Moriá? Desconversou! Reclamei. E continuamos a recordar aqueles dias. Até que Pietro, com seu olhar maroto, resolveu se explicar: Eu não poderia me despedir da mulher amada tão facilmente. Quanto a seu pai, ele estava fazendo o seu papel, o que não é fácil. Dia desses Laura e eu casamos nossa Nicole, também tivemos que fazer nosso papel.

       Pietro tomou mais um gole de café e pediu licença: Volto logo, tenho que ver uma ovelha. Ah: Comentei, vocês tem criação de ovelhas? Também: Responderam divertidos.

         Laura sentou à minha frente e pegou minhas mãos: E você como está? Perguntou. Não acreditei na resposta que saiu de minha boca: Solitário.

Durante mais de uma hora abri o coração diante de olhos atentos. E diante das palavras que me disse, quase pude sentir a presença do Deus desconhecido que Paulo falou. E sobre quem Laura não tinha nenhuma dúvida.

            Enquanto dirigia de volta, pensava sobre o que mais nos foi cobrado na vida: Um futuro de vitórias. Mas não nos ensinaram que esta construção precisa de um fundamento seguro. Vi Laura no meio de uma família bem construída. Sorrisos abertos e transparentes. Filhos amáveis, netos saudáveis e atenciosos. Uma de suas frases que ficou gravada em meu coração: “Construímos nossa casa sobre a Rocha, Ernest, era tudo o que tínhamos.”

        E de tal forma floresceu, pensei comigo. Então, o que é um futuro de vitórias? Uma boa conta no Banco? O nome em destaque? Sim, pode até ser, mas há um ingrediente que não pode faltar: A solidez da Rocha como fundamento. O sustento dos Braços Eternos. Lembro de minha esposa como uma mulher magoada. E de filhos emocionalmente feridos. Minha casa ruiu como numa tempestade. E o dinheiro e a fama, nesse dia, se revelaram um fundamento de areia.

           No final de janeiro mamãe partiu. Laura insistiu que fosse viver com ela no campo, mas nunca aceitou. Ficou até o fim em sua velha casa com uma cuidadora. No entanto, pode receber com alegria as visitas de Laura e sua família.

          Tudo que sobrou da fortuna foi a casa. Mamãe deixou para Laura, mas ela não aceitou. Acabou concordando em vendermos o imóvel e dividir o valor em sete partes iguais, os sete netos de meus pais.

         Pouco tempo depois recebi uma visita incomum.  Um paciente idoso que não via há algum tempo, com ótima disposição. Não acreditei tratar-se da mesma pessoa. Enquanto olhava, tentando entender, ele sorria: Querido Doutor, me sinto feliz em lhe fazer essa visita, porque sei que fez tudo para me curar. Mas precisou me mandar para casa para morrer junto de minha família. Acontece que quando sai daqui fiz uma oração, só entre Deus e eu: Senhor eu concordo com Paulo quando disse aos Filipenses 1: 21: “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é ganho”. Mas te peço, pra viver mais um pouquinho, cheio de saúde, só pra vir aqui dizer ao Doutor que: “Jesus Vive”! E eu estou fazendo isso hoje para Glória de Deus Pai!

       O senhor Negri, um paciente terminal, milagrosamente curado e Donald, meu colega e amigo. Foram as duas pessoas que incansavelmente me conduziram às palavras da Vida.

       Procurei meu sogro e pude conversar longamente com ele sobre sua clínica. Eu precisava de um tempo para “consertar meus alicerces pessoais”. Ele falou sobre seu sobrinho. Eu mesmo fui procurar o primo de minha ex-mulher. Meu sogro estava certo. Era um médico bom e capaz, que ficaria em meu lugar.

            Decidi então, ir atrás do que restava após a tempestade que se abateu sobre minha vida afetiva. Mas essa reunião familiar aconteceu em dia inesperado, no dia do enterro de meu sogro. Minha mulher agora com um novo marido. E meus filhos, três jovens que me cumprimentaram friamente atrás de seus óculos escuros. Lembrei então que nos últimos anos, muitas vezes, Catherine me pediu o divorcio. Quando fui cumprimentá-la, acrescentei amigavelmente: sei que não é o momento, mas quando quiser, pode marcar com minha secretária para assinarmos o divórcio. Tive a impressão que seu rosto se iluminou.

           Alguns meses depois consegui pedir perdão a meus filhos. Assisti ao casamento de minha filha. E achei que nada mais havia a salvar.

          No entanto, nestes últimos dias, tenho aprendido sobre um lugar junto ao Pai, onde é possível construir um novo alicerce para quem amamos, e um futuro sobre a Rocha.


Epilogo:

    Embora possa dizer que qualquer semelhança com nomes, ou acontecimentos, narrados neste conto, sejam mera coincidência. Também preciso concordar com Antoine Lavoisier, em sua célebre frase: "Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Para dizer que não só na natureza, mas também em tudo o que consumimos durante a vida, nos mais diversos tipos de arte ou aprendizado, transformamos em novas produções. Como o texto trata da importância de um fundamento seguro para a vida, cito abaixo algumas referências, que me inspiraram.

 

REFERÊNCIAS:

Os Dois Fundamentos; Mateus 7: 24 a 27. Bíblia Sagrada.

O Monge e o Executivo: Livro de James C. Hunter, 1989.

Seriado: Um Golpe do Destino (The Doctor. 1991). https://www.youtube.com/watch?v=6i6bbBmesRg

  

Marina J. Alves,

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog